Para Daniel Carvalho de Andrade, irmão e amigo.

MANHÃ

Acordo cedo todos os dias, tem sido assim há tempos. Família, trabalho, responsabilidades, e lazer, este último quando existe possibilidade. A vida na grande cidade requer do sujeito também grande senso de sobrevivência, como indivíduo e como grupo social. Enfim, não dá pra me perder em divagações enquanto espero um quarto da cidade despertar, dirigindo em direção ao trabalho.
Não tenho hora para chegar, desde que eu chegue cedo, muito menos hora para sair. Sim, já me habituei a mais essa exigência, na verdade por vezes acho até que as exigências são minhas. Que seja! Deixei de viver e cumprir minhas tarefas por acaso? Enfim, não dá pra ficar perdido em divagações enquanto um terço da cidade se dirige ao trabalho em fileiras de carros que chegam a alcançar quilômetros.

A janela do carro e o para-brisas tem sido a TV por onde eu vejo o mundo, não tão belo e rico quanto o que as famílias veem nas novelas, porém real. Pode até parecer que vivo num mundo real demais, mas como poderei explicar? meu mundo é o mesmo que o seu, ou não é? se o vejo de forma diferente deste ou daquele não significa que meu mundo seja diferente. Digamos que tenha gente que fantasia demais o seu mundo, eu também posso ter passado por isso, mas veja bem, passado, e tudo que é passado fica para trás. Enfim, não quero aqui me perder em divagações enquanto o farol fecha e uma multidão atravessa a faixa num comboio que segue enxergando apenas o que lhe aponta o nariz.

Tenho sido eu mesmo há tanto tempo, que algumas vezes me pego fazendo as coisas automaticamente, sei lá, até acredito que ajo instintivamente. Rezo todos os dias, sou homem de fé; vez por outra se sobra um tempo, vou ao cinema ou tomo um vinho com amigos enquanto fumo um charuto. E assim, entre um café e outro, ainda dá pra papear e sorrir ao lado dos amigos. É, eu disse rir e não gargalhar, sou moderado em meus atos, afinal para que servem os exageros? tem gente que pensa que o mundo é uma vitrine de shopping center onde o sujeito precisa se expor de vez em quando em busca de notoriedade e visibilidade.

Esse tipo de atitude é o que provoca a deformação da sociedade, ou pelo menos colabora; tá certo que todo mundo precisa viver, eu compreendo isso, no entanto, não acredito que haja a necessidade de se vender ou se render à imposição da moda, naquelas de que, se alguém ta fazendo eu também quero fazer. Isso no meu tempo era chamado de inveja, enfim, eu é que não vou ficar aqui divagando sobre a possível pederastia social de alguns, enquanto estaciono o carro, como faço todos os dias, mecanicamente e no mesmo local.

TARDE

Eu almoço cedo, não gosto de ficar enrolando. Depois de ter providenciado e distribuído tarefas, fico atento ao movimento nos arredores. Tudo vejo, nada escapa a meus olhos treinados. Poderia nominar um a um os visitantes usuais do local onde trabalho, quanto aos transeuntes, não é difícil traçar uma característica assim que me deparo com eles, é como se as pessoas denunciassem sua forma de ser e aspectos mais íntimos através de um simples gesto, ou caminhar ou falar. Você pode até não acreditar, mas eu noto essas coisas nas pessoas, e ajo assim instintivamente, além do mais, eu não fico a perder tempo com divagações sobre o que as pessoas são ou deixam de ser.
Sim, eu ando armado, legalmente armado, e há tanto tempo que a arma passou a ser uma extensão de meu corpo, um membro a mais. Essa coisa de que armas geram mais violência é papo furado, e outra, a bandidagem anda armada até os dentes. Eu mesmo me considero tranquilo e pacato, a arma não me transformou em violento nem em super-herói, ou seja, esse discurso aí eu não engulo.
Sempre que saio levo a arma comigo, não poderia ser diferente. Se me fio na arma? amigo, ou você confia em Deus ou em nada mais, e outra, eu levo uma arma e não um escudo protetor ou barreira de força anti-balas, francamente, as vezes não entendo bem o que passa pela cabeça das pessoas, e também não quero perder meu tempo divagando sobre o que elas acham ou deixam de achar, eu me apego a Deus e pronto!

Agora mesmo vou ao banco, tarefa que faço quase que diariamente. É verdade, o dinheiro move o mundo, que move pessoas, que são movidas pela gana, que move bandidos, que são movidos pela ilusão de dinheiro fácil... já o dinheiro, bem, esse somos nós que o fazemos movimentar, somos nós a dar-lhe vida constantemente.
Observo tudo na agência bancária. Na fila onde eu estou não vejo nada de anormal ou suspeito; no caixa retiro uma determinada quantia em dinheiro que devo transportar até outro ponto da cidade, e não é pouco e nem a primeira vez que faço isso. Enfio tudo numa bolsa que trago à tiracolo e saio da agência para cruzar alguns bairros levando o vil metal que atormenta muitas vezes o homem.
Na saída noto que alguém me observa, como eu disse, sou um cara treinado, experiente, mas enfim, é só mais um tonto que me observa não tão discretamente. Encaro-o, questiono-o com o olhar e sigo. Por um momento pensei em voltar para o banco, temi ser assaltado, são essas coisas de instinto.

Continuei. Tornei a olhar para o outro lado da rua de onde o sujeito me encarava e não mais o encontrei. É, nem sempre dá pra acertar, entro no carro e dirijo em direção à empresa. Confesso que fiquei apreensivo e preocupado, porém, não vou perder meu tempo em divagações sobre pessoas suspeitas, principalmente quando paro no farol e tenho que ficar atento à sua abertura.
Do lado do meu carro para uma moto. Quem dirige em São Paulo, sabe muito bem que motoqueiros não são de parar, se podem continuar. A pista livre e lá permaneceu a moto colada a meu carro. É, tá complicado meu dia, de imediato meu estresse vai à milhão, eu aqui já peguei a arma e coloquei no colo, tem algo estranho aqui, penso.
O farol abriu, acelero e saio normalmente... a moto não me ultrapassou e em mais alguns metros ela sumiu de minha vista. Sigo dirigindo atento a qualquer movimentação estranha, ou pelo menos que eu considere estranha. Fiquei de 'antena ligada' como costuma dizer as pessoas, mas continuei o meu trajeto. Esse é o meu normal.

É, eu faço isso sempre, o caminho é o mesmo, a empresa a mesma, os perigos são sempre os mesmos, até quando eles não existem. De uma coisa eu sempre fui ciente, na vida estamos sujeitos a coisas que representam o contrário do que fazemos, ou seja, se você dirige todos os dias, possivelmente não se aposentará sem ter se envolvido num acidente de trânsito, mesmo que seja apenas uma lanterna quebrada. Bem, eu é que não vou perder meu tempo divagando sobre possíveis acontecimentos do trânsito, principalmente quando eu chego a meu destino com uma grande quantia em dinheiro e um alto índice de estresse.

Paro o carro como sempre a alguns metros do pátio da empresa. Pego a bolsa, a arma e saio do carro. Olho ao redor... tudo tranquilo, nada de anormal ou diferente, e melhor, nada de motoqueiro me seguindo. Caminho até a entrada, adentro ao pátio da empresa e respiro aliviado, graças a Deus, tudo correu bem. É assim, tem vezes que esse trabalho me estressa mesmo, e ter que ficar atento em tempo integral vai acabar com meus nervos uma hora dessas.
De repente, como surgido do nada, o rapaz que me encarara na saída da agência bancária, lembra-se dele? vem em minha direção com a arma em punho, para a dois ou três metros de mim, aponta a arma para minha cabeça e pede a bolsa. Eu pude notar sua respiração afobada e de medo ou era a minha sei lá...
- pelo amor de deus cara!!! Pelo amor de Deus!... - falei curvando-me naturalmente como se tentasse me esquivar da bala, e atirei três vezes seguidas... “pow pow pow”!!!.. olho de lado e vejo o comparsa dele tentando se aproximar e também atirei em sua direção, nisso ele recuou.
Essa coisa de que passa um filme de sua vida nesse momento é papo furado tá?, balela pura, coisa de cinema. Aliás, se é filme só poderia ser de cinema, no entanto, não vou ficar preocupado em divagar sobre a ilusão das pessoas, principalmente quando minha vida está em risco.
Morri, pensei comigo. Não sei se é muita pretensão minha morrer e continuar pensando, mas neste momento estou certo de minha morte. Enquanto ela não se confirma, continuo atirando e correndo desesperadamente em busca de um abrigo... Bem, daí já é querer demais, um morto correndo e atirando!
Paro atrás de um caminhão e fico esperando o pior. Que pior? na verdade, aquilo já era o pior. O velho coração estava como se sob efeito de uma bomba de estimulantes, mas quer saber? eu não sou de ficar divagando sobre a vida e a morte, principalmente após sobreviver a um tiroteio.

NOITE

Como sempre retorno para casa depois de um dia de trabalho... minto, não volto como sempre, volto atônito e sem querer acreditar no que passei. Como você sabe, eu sou treinado, ando armado, não sou dado a gargalhadas, servo de Deus, vou ao cinema, fumo charutos e tenho família e amigos... o que mais sou?
Em casa tudo está normal, esposa e filhos, acho que apenas eu estou mudado. Eu sempre me achei preparado, espera lá, eu sou preparado! Só não contava dar de cara com o óbvio que eu mesmo vaticino sempre.
As vezes me pergunto o que é que faz com que o cidadão tenha em suas mãos grande quantidade de dinheiro que sabe que não é seu e o preserva para seu verdadeiro dono; por outro lado, existe aquele que nada fez para merecer algo, tenta se apoderar do que não é seu colocando em risco toda uma cadeia de relacionamentos, e as vidas envolvidas.
Eu sei que um pai é movido pela responsabilidade; um policial pelo dever; um padre é movido pela fé, mas o que move um bandido e sua gana?

Na verdade, eu não quero é ficar divagando sobre o que é certo ou errado, principalmente quando quatro quintos da população estão em suas casas trancafiados, perdendo o sono devido à violência e falta de segurança.

Vou p’ra cama tentar dormir, afinal de contas, hoje foi um dia que eu perdi, adeus!