Que trânsito é esse? — Pensei comigo – que quinta-feira insana e desproposital! Vou parar pra tomar um café e atrasar minha chegada em casa, afinal, com essa chuva eu me atrasaria de qualquer forma. Sigo em direção à Lopes Pena, lá tem um café onde costumo ir pra distrair-me nos dias em que o ‘‘stress” me pega de jeito e me corrói a mente.
Todos nós procuramos refúgio em algum lugar da cidade grande, é sério, é uma rotina que criamos para fugir da rotina.
Diferentemente dos que optam pelos ‘barzinhos’ e seus ‘chopps’, toda quinta-feira eu fujo para os cafés… Às terças, quartas e outras feiras também, aliás, sempre que posso.
Os cafés são mais quentes, aconchegantes e silenciosos… Sei lá, mas, pode ser também porque nos cafés somos mais individuais, solitários e na maioria das vezes ímpares. Sim, já reparou que é difícil encontrar alguém tomando um ‘chopp’ ou cerveja, sozinho? Esse pessoal está sempre acompanhado de um grupo, papeando, sorrindo ou disfarçando sua infelicidade. O café não, ele tende a ser mais realista.
Eu vou sempre a um café… Lá é possível encontrar outros ‘eus’, sozinhos, cabisbaixos, sorvendo café vagarosamente como se aproveitasse ao máximo aqueles instantes de solidão em público. Não vou mentir, eu adoro essa fuga, e ela se faz necessária.
Entro no estabelecimento e procuro com o olhar rapidamente uma mesa isolada e dirijo-me até ela, nos fundos, tendo no encalço um garçom todo arrumadinho.
– Um café… Puro… – o cara anota algo no papel, deixa o cardápio sobre a mesa e se afasta.
De lá do fundo, solitário em minha mesa, após um dia chuvoso, sorvo vagarosamente o líquido precioso enquanto espero o tempo tornar-se passado. Tem sido assim sempre… um café, uma mesa vazia e o tempo a subir pela fumaça temperando o ambiente que já cheira a café, invariavelmente.
De onde estou tenho uma melhor visão de quem entra e sai do local, ali medito sobre o que sou e o que não sou, bem mais sobre o que não sou, é óbvio, pois o café possibilita esse estranho acalanto de alma que se chama sonho. Renovo-me e não me dito mais nada… me deixo.
Eis que chega uma garota fugindo da chuva (pelo que parece, ou trazida por ela, sei lá). Reparei na beleza de seu corpo coberto de preto dos pés à cabeça, como se já não bastasse o negror de seus cabelos, ela se apresentava linda até na forma de se vestir. Como pode notar, o café proporciona visão prazerosa também.
A mulher que frequenta cafés, ou é clássica demais ou muito moderna e liberal, e na maioria das vezes está acompanhada e feliz, não necessariamente por estar no café.
Acompanhei-a com o olhar até ela fazer seu pedido. Um café?… Pensei comigo, é, os tempos mudam com a chuva. Retraí minha paixão pela beleza e me contive ali, preso ao sabor do líquido quente, macio e saboroso, tentando voltar a mente para as divagações anteriores… Inclusive anteriores à morena da qual falo.
Olhei para o relógio, marcava 20h, eu tinha que voltar pra casa, é o que acontece todos os dias, invariavelmente, mas, por algum motivo, achava-me ali sentado, despreocupado com a hora, alheio à vida.
A morena desponta lá… Caminha em direção aos fundos, olhando na direção da minha mesa precisamente, ou pode ser delírio meu, reflexo de um fim de dia chuvoso.
– Posso? – pergunta colocando o café sobre a mesa em que eu estava e a bolsa sobre uma cadeira vazia ao lado.
Concordei, claro, mas, me intrigou o fato de ter outras mesas desocupadas e ela ter vindo até onde eu estava. Tomar café é como um retiro espiritual, requer paz de espírito, e qualquer distração pode ser vista como um tipo de ameaça… Ou neste caso, tentação.
– Não gosto de tomar café sozinha… me entristece — Falou isso enquanto se sentava na cadeira bem em frente a minha.
Fiz um sinal com a mão, o garçom se aproximou e eu pedi outro café… Puro, como sempre, quem sabe eu desperte. Finjo entender, aliás, não me preocupei em entender, sorri levemente com o canto da boca como a zombar das loucuras do acaso. As pessoas passam a temer a tristeza e a solidão como se fosse possível evitá-las.
– O café daqui é ótimo, não acha? — comenta a morena já bem acomodada.
– É, e melhora a cada dia — respondi enquanto olhava ela puxar com as pontas dos dedos os cabelos que lhe cobriam o rosto, levando-os até a orelha, ao mesmo tempo em que olhava pra mim franzindo levemente a testa.
Não falamos muito, apenas o suficiente, enquanto sorvíamos o incomparável líquido preto. Estávamos ali solitários e atrasando a volta para casa num dia de chuva. A cada gole, uma olhada proposital a conferir o roçar dos lábios na borda da xícara daquela que surgiu do nada. Tudo agora parecia mais quente do que o normal.
Alguns poucos comentários sobre a chuva que nos prendia ali e então finalizamos o café, fenômeno que une dois estranhos como se fossem conhecidos. Não havia muito que falar, nossas alianças no dedo da mão esquerda denunciavam a nossa condição de limitados. Chamei o garçom e pedi a conta.
– Por favor, o café da moça aqui também!
O próprio garçom disse que o dela já havia sido pago anteriormente. Ela confirmou com um sorriso de lábios cerrados.
Reparei mais uma vez no seu cabelo arredio e preto, como o café, como a noite, os olhos, o vestido…
Andamos em direção à saída, calados.
Não trocamos nomes, nem telefones, apenas um longo beijo molhado selou nosso tesão por café e fugas.