ONDE ESTARÃO OS MEUS?

Aos pais órfãos de filhos

Segunda-feira de manhã

Acordei sem muito ânimo hoje, alguém me lembra que o café está na mesa e que é melhor não me demorar. Arrumo o pijama, ele tornou-se roupa oficial. Calço um par de sandálias de couro já surradas pelo tempo de uso que me acompanha desde que aqui cheguei.

Não sou de reclamar, ou, pelo menos, não era, mas, gostaria de estar num lugar melhor… Sair daqui? Infelizmente ainda tem os que acreditam nisso. Somos todos vítimas de alguma coisa, podendo ser até de nós mesmos, mas, a maioria aqui é vítima dos que mais amaram. Quer saber, deixe-me sair da cama, pensar nisso é insalubre.

Caminho em passos lentos em direção à porta. Uma enfermeira vem me encontrar fazendo questão de lembrar-me de que a mesa está posta para o café da manhã e que eu, como sempre, estou atrasado. A locomoção tornou-se difícil, arrasto os pés como se os mesmos estivessem presos a bolas de ferro, como aquelas que vemos nos antigos filmes americanos.

A idade acaba nos enganando, como se a mente não pudesse acreditar que envelhecemos, e quando acredita, age como se tivéssemos sempre 20 anos a menos. É mais demência que ilusão.

Na mesa encontram-se já acomodados e aguardando impacientes, além dos amigos que aqui residem, o café, o leite, os pães já com margarina, suco de laranja, algumas frutas, chá, torradas e três comprimidos coloridos os quais nunca pudemos saber o que são. Esses últimos citados devem ser os primeiros a serem ingeridos sob intensa pressão dos cuidadores.

Tudo aqui é vagaroso e ordenado demais até para nós, os velhos. Sim, velhos.

Após os cumprimentos fazemos nossa primeira refeição do dia, quase nunca em silêncio, pois, sempre há copos quebrados, alguém que derrama o leite na roupa ou que não consegue comer sozinho. Há também os resmungões e as enfermeiras que a contragosto limpam a sujeira feita, ou alimentam algum miserável. Isso acontece todos os dias, invariavelmente.

Eu já tentei entender a situação em que vivo, mas, achei melhor não cogitar mais, o ser humano é realmente uma estranha máquina que presencia o que poderá lhe acontecer no futuro e mesmo assim, pouco faz para mudar sua forma de agir e pensar. É como se achasse imune ao tempo, às doenças e à morte.

Além da hora de começar, o café da manhã também tem hora de acabar, então, quarenta e cinco minutos depois somos conduzidos para uma área externa, onde podemos tomar sol, papear e respirar um pouco do ar de liberdade. É um jardim amplo com passagens largas, florido, poderia até ser um lugar lindo, não fosse um muro branco de aproximadamente 4 metros de altura com cerca eletrificada que deixa uma sensação viva de confinamento.

Independente do muro, sempre é prazeroso ficar no jardim num bate-papo com os companheiros. Na verdade, o papo se repete toda vez, os assuntos são os mesmos, as opiniões também, o que faltam são as novidades para incrementar as nossas conversas, mesmo assim, canso de ver discussões acaloradas que requerem a intervenção das enfermeiras.

Nem parece que já cruzamos a casa dos oitenta anos e que estamos encerrados dentro de alguma coisa que não consigo definir nem como casa de repouso nem como centro de tratamento para idosos. Na verdade, durante o primeiro ano imaginei que isso fosse uma prisão, hoje eu tenho certeza.

Quem sou eu

Já não me importo mais com o que sou ou o que fui, mas, poderia ser qualquer um… Viúvo, 86 anos, formado em administração de empresas. Tenho três filhos, ou melhor, tive, mas, no fundo, sou um velho cheio de memórias e sem esperanças.

Aqui estou há quase 10 anos, trazido por meus próprios filhos. Minha doença? Que eu saiba nenhuma, mas, para alguns: Velhice.

Fui filho único, perdi meus pais aos 41 anos num acidente aéreo. Casei aos 30 anos, aos 32 tive o meu primeiro filho, aos 36 o segundo e por último uma menina, quando eu já contava 40 anos de idade. Dediquei muito de meu tempo a meus filhos. Como empresário bem-sucedido tive um rol de funcionários, tanto na empresa quanto em minha casa, por isso nunca passei mais de uma semana longe de minha família.

Tive o prazer de ver meus filhos trabalhando comigo, dedicados, competentes… Ah, papo de velho ‘né’? Mas, eu vivi tudo isso, não tenho como apagar, na verdade, isso as vezes me parece uma chaga a me corroer noite e dia.

Minha esposa faleceu há 21 anos, depois de sofrer por uma década com um câncer que a consumia aos poucos.

Com ela foi-se embora parte de mim, de minha vontade e de minha vida. A morte de Alba muito me abalou e daí em diante minha vida foi se resumindo a leitura, filmes e papear com algum amigo que por ventura me visitasse. Passei a viajar menos, a trabalhar menos e me isolei.

Se tive netos?… Parece que sim, mas, não pude conviver com eles. Por algum motivo que desconheço os filhos crescem e traçam seus próprios rumos, a vida é assim. Soube que se casaram todos eles, a caçula até saiu do país e pelo que soube é arquiteta e mora na França.

Pouco antes da morte de Alba recebemos a visita do filho mais velho, trouxe consigo um lindo garoto, seu filho, tão belo e forte que me emocionou, eu me vi naquele garoto. Foi a única vez que nos vimos, mas, lembro-me como se fosse hoje… A sensação de perpetuação anima um pouco a alma de um velho.

Sempre me imaginei correndo com meus netos, lendo, jogando xadrez, passeando… Mas, isso tudo só foi possível em minha imaginação. Desde que cheguei aqui, nem filhos, nem netos e nem amigos, depois de alguns meses nem mais correspondência.

Não sei se acredito em um deus, e se acredito não será por muito tempo, porém, se acreditasse mais, eu pediria minha família de volta, enquanto ainda guardo boas recordações e a lembrança é viva, viva demais até.

Não tenho medo da morte, não, ela assusta menos do que a solidão em que me encontro, o que me incomoda mesmo é sentir-me sujeito pensante, quando tentam me convencer de que velho não pensa ou não sabe mais o que faz.

É horrível a sensação de saber das coisas, de perceber o que acontece ao redor e nada poder fazer para mudar. Eu escuto e finjo que não ouvi, pois me convenci de que sou apenas um velho tentando ficar velho.

A tarde é de leitura

Não posso reclamar da atenção que aqui me dispensam, exceto pelo rigor das normas e a brutalidade de alguns funcionários, o mais torna-se compreensível, principalmente depois que você se dá conta de que está sozinho e abandonado pela família, e essa sensação é uma das poucas coisas que vão crescendo diariamente e tornando-se realidade.

Excetuando-se os dias de muito calor, o banho acontece sempre a partir das 16 horas, diariamente, e chega a ser uma ocasião deprimente. Claro que se pode evitar alguns constrangimentos se esquecermos de que um dia fomos jovens e saudáveis. Na hora do banho, somos despidos de toda qualidade de pudor que nos possa ter restado, e a sensação é de que somos bichos.

Além da agressão moral, existem também os maus-tratos e a humilhação. Por outro lado, se for pensar bem, que dignidade resta para alguém que usa fraldas sem ser bebê e vez por outra não consegue nem falar; que se locomove em cadeira de rodas ou trêmulo com sua bengala balbuciando termos inaudíveis? Tudo bem que não é o meu caso, por enquanto.

Passo parte da manhã sob uma árvore frondosa no jardim, vez por outra vem alguém puxar conversa, uma dessas pessoas é a enfermeira Júlia que age como se tivesse interesse em minha vida. Dela recebo uma boa cota de carinho e atenção, mas, não me acostumo mais com a ideia de carinho. Essa boa moça faz questão de dizer que estou bem e lúcido… Maldita lucidez!

Uma vez por semana vem uma médica examinar os que apresentam ou apresentaram problemas de saúde, lembro-me de tê-la consultado algumas vezes. Fora isso, a manhã é na maioria das vezes uma fuga para o jardim florido de muros brancos e altos.

Aos poucos vou me encaminhando a passos pesados em direção ao refeitório, ciente de minha lerdeza e de que logo alguém anunciaria a hora do almoço, pedindo pressa. A mesa encontra-se limpa, já com os copos, pratos e talheres postos. Tudo tem uma aparência perfeita.

Aparentemente todos se alimentam bem, exceto aqueles que dependem do auxílio dos funcionários para se alimentar, aliás, uma situação extremamente difícil de presenciar sem sofrer.

Depois da refeição farta somos retirados para uma sala ampla, lá podemos ver televisão, cochilar, ler o jornal, livro ou revista, escrever, sonhar… A televisão sempre me irritou, o jornal e a revista expõem minha situação de confinado, então, pego um livro na estante e passo a tarde sobre ele, entre um capítulo e outro, um breve cochilo restaurador.

Esse também é o período em que eles entregam as correspondências, quando há, afinal, existem aqui aqueles que ainda mantêm contato com familiares e amigos… E nem imaginam que isso só durará alguns meses. Bem, ao menos ainda têm um alento.

Como eu disse anteriormente, há muito eu deixei de sonhar, aceitei a realidade, claro que não de bom gosto. Relutei, esperei, pensei ser um engano dos meus filhos e até tracei planos de fuga. Hoje tento fugir do que vivi e do que vivo de verdade.

Aprendi a viver apenas o momento, onde o ontem eu apago e o amanhã eu só saberei quando acordar e começar a viver. Para mim todo dia é igual a todo dia, e o que é um dia para quem não nutre esperanças?

O certo é que aqui, todos nós sofremos do mesmo mal: a solidão, e não é uma solidão qualquer, é a solidão gerada pelo desprezo daqueles pelos quais dedicamos parte de nossas vidas.

A noite e a lágrima

Após o banho diário do final das tardes ficamos todos asseados e cheirosos, trocamos o pijama e até colocamos alguma blusa de lã quando o tempo esfria um pouco mais. O pessoal que trabalha a noite é um pouco mais tranquilo, mais liberal, ou menos implicante, talvez devido ao fato de passarem a maior parte do tempo de sua jornada de trabalho enquanto dormimos.

Jantamos algo leve, e sempre tem uma sopinha quente, basta pedir. O jantar transcorre muito que rapidamente, às 19:30 todos já estão se acomodando em seus quartos.

A divisão dos quartos se dá de forma que homens e mulheres fiquem separados, ficando quatro pessoas por quarto. As camas estão dispostas todas voltadas para um televisor que fica no alto. Do lado das camas existe uma mesinha contendo: sinete, uma luminária, um copo com água, uma toalha, objetos pessoais e do outro lado um pequeno armário onde guardamos nossas roupas e outros pertences.

Em cada quarto há um banheiro, uma mesinha e cadeiras, uma janela com grade, um calendário e um relógio na parede. Todos os cômodos dão para o mesmo corredor amplo e iluminado, as portas não são trancadas e é até permitido visitarmos outros quartos.

Mas, é no silêncio da noite que podemos ouvir os murmúrios, as dores, os pesares e o choro dessas pessoas que já foram crianças, foram adultos e agora voltaram a ser crianças. Em cada choro, em cada lágrima é possível sentir cravado na alma, a clava do abandono, da incompreensão, da amargura e também do perdão, por que não?

E eu choro… Você também choraria ouvindo esses lamentos, e então me pergunto: como podemos depender tanto de quem tanto dependeu da gente?

A noite é uma lágrima de sofrimento que a humanidade descarrega no nada. Eu não tento entender o mundo e nem o homem, mas, admito ter conhecido animais muito superiores aos homens em alguns de seus atos.

Decerto que conheci culturas onde os mais velhos eram condenados à morte ou à exclusão do seio familiar por uma tradição bárbara e inumana, e sempre achei isso um absurdo sem igual, porém, por outro lado, sempre acreditei na evolução do homem, na melhoria da sociedade, na erradicação dos males sociais, sempre achei possível uma sociedade humana, justa e igualitária, com menos sofrimento.

Mas, toda noite, ao ouvir o clamor do coração dessas criaturas, eu choro, me fortaleço e me convenço de que não pode haver ninguém no mundo que possa fazer algo em favor deles, não importa qual seja seu apelo, sua condição ou sua crença. É simples de entender isso, em nove anos, nunca vi alguém sair daqui… exceto num caixão.

Aqui é o último lugar antes da morte, e que mais parece com o inferno que os fanáticos religiosos tanto propagam. É aqui o cemitério dos vivos com seu cruel rito de passagem.

A noite intensifica a dor daquele que acalenta sonhos e ver no outro dia tudo se repetir, sem novidades. Todos os dias topamos com uma realidade cruel e desumana, e de noite, debaixo de lágrimas, percebemos que estamos sós, e que cada um de nós é uma ilha.

Somos um arremedo de gente cercado de ingratidão por todos os lados, e que no fundo, percebemos que estamos melhor como ilhas do que cercados pelos que nos abandonaram… O choro decorre justamente desta infeliz constatação.

Não mais acalento sonhos, não mais acredito na vida e nunca esperei por salvação, mas, um dia eu já me perguntei: – Onde estarão os meus?